quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Chegar com a brisa

Chegar, como brisa que atravessa a janela.
Soprando de leve, as brumas do passado.
Chegar, como o barco. 
Trazendo alegrias,
 após enfrentar as procelas sombrias.
Chegar, como a saudade. 
Que bate, de manso, no coração.
Chegar, como chuva, fininha, mansinha,
criadeira, necessária e tão querida. 
Ficar, nas lembranças do passado,
 nas estampas do presente,
 a retratar nosso ontem no hoje.

Ficar, para sempre. 
Na imagem nunca esquecida,
 dos que nos são tão queridos.
A vida, é chegar e ficar, para sempre. 
Vida nunca será partida. 

Cecília Meireles

Chegar como a brisa

Até amanhã

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.
É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.
É subitamente um grito, 
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.

Eugénio de Andrade

Bebendo à luz da lua



Um jarro de vinho entre as flores,
bebo sozinho - nenhum amigo me acompanha.
Alço minha taça, convido a lua
e minha sombra - agora somos três.
A lua não bebe
e minha sombra apenas imita meus gestos.
Mesmo assim, são elas as minhas companhias.
É primavera, tempo de festa -
canto, a lua escuta e cintila;
danço, minha sombra se agita, animada.
Enquanto estou sóbrio, juntos estamos os três;
quando me embriago, cada um segue seu rumo.
Selamos uma amizade que nenhum mortal conhece.
E juramos nos encontrar no mundo além das nuvens.

Li Po

A noite na Ilha


Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha. 
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono, 
entre o fogo e a água. 
Talvez bem tarde nossos 
sonos se uniram na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
embaixo como raízes vermelhas que se tocam. 
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado 
e teus olhos buscavam o que agora - pão, 
vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos, 
porque tu és a taça que só esperava 
os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira, 
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos, 
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura. 
Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca 
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida, 
e recebi teu beijo molhado pela aurora 
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

Pablo Neruda

A voz do Mar

A voz do mar entende-a
 quem do mar viveu as tempestades e as bonanças,
 quem nele pôs cuidados, esperanças,
quem lhe deu o seu riso, o seu pensar.
Quem fez o seu jardim, o seu pomar,
 de búzios, de corais, de areias mansas,
 quem ergueu sobre as  o seu lar
 e por ele cruzou ferros e lanças.
Quem sabe de marés, luas -cheias e não teme os trintões
 nem as sereias nem, de Neptuno, as barbas e o tridente.
A sua voz entende-a quem, de Sagres,
 se fez ao mar em busca de milagres,--
 todos  nós neste barco do Ocidente

Fernanda de Castro

O Rei do Mar

Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.
Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...
Nem tormenta nem tormento
nos poderia para.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Cecília Meireles

Poema

Poema
Água peregrina fina flor do vento
Tua voz divina da-me ainda alento
Navios antigos há muito partiram
Os mastros vão lindos
As velas cairam.
No cais beira-d'água meus olhos perdidos
escuta a mágoa
Dos barcos esquecidos
A força ou perdão quer ainda levar
todo o coração nas ondas do Mar?

Ruy Cinatti

Apresentação

Aqui está a minha vida- esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui em minha voz- esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está a minha dor- este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está a minha herança- este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento

Cecilia Meireles

O Rei do Mar


Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.
Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...
Nem tormenta nem tormento
nos poderia para.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Cecília Meireles

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Noturno


NOTURNO


Veleiro ao cais amarrado
em vago balouço, dorme?
Não dorme. Sonha, acordado,
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.

Se acaso me objetardes
que veleiro não é gente
e, assim, não sonha nem sente,
sem orgulhos nem alardes
eu direi: por que haveria
de falar-vos do homem triste
mas de olhar grave e profundo
que, à amargura acorrentado
sonha, no entanto, que vive
toda a beleza do mundo?

Melhor é dizer: Veleiro...
veleiro ao cais amarrado,
sob as límpidas estrelas.
Vela branca é uma alma trêmula,
sobretudo se cai sombra
do alto abismo constelado.
Veleiro, sim, que não dorme
mas na silente penumbra
sonha, ao balouço, acordado
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.


Tasso da Silveira