sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Pescaria


Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.

Cecília Meireles

Fundo do mar

Quero ver o fundo do mar
esse lugar de onde se desprendem
as ondas
e se arrancamos olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados

Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço

Mia Couto

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O mais é espuma


Poucas certezas tenho e mesmo essas
foram, não raro, erguidas sobre a areia
sem qualquer resistência à maré cheia
das decepções, mentiras e promessas
de que a vida se faz, contra as pregressas
convicções radicadas na ideia
de o mundo ser premeditado e certo,
ondas no mar e dunas no deserto.

Mas, acima do vago e inconsistente
fluir dos dias, basta-me saber
que te tenho comigo e estás presente
para o que der e vier
sem me cobrar coisa alguma
e isso é que importa, o mais é espuma.

Torquato da Luz

Abandono


Abandonei na praia o que juntara
com grande esforço ao longo da jornada
e fiz-me ao mar sem cuidar de mais nada
que não fosse a ideia fixa e ignara

de te encontrar algures, empresa rara
mas nem por isso menos ansiada,
numa ilha qualquer despovoada
a que a barca dos sonhos te levara.

Mas, afinal, apenas encontrei
por entre as ondas altas a memória
de um ou outro navio que se perdera

e já na imensa praia, a que voltei,
ninguém sabia mais contar a história
de quem tu foras e eu ainda era.


Torquato da Luz